Como a aviação garantiu o posto de transporte mais seguro do mundo?
Ok, o meio de transporte mais seguro do mundo é o elevador, mas se você precisa ir um pouco além do seu prédio, talvez seja necessário utilizar o segundo colocado: o avião.
Bom, vamos aos fatos, segundo dados apresentados pela CENIPA (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), no Brasil, entre os anos de 2010 e 2019, aconteceram 1.210 acidentes aéreos, sendo que, por ano, em média, foram registrados 121 acidentes. Entretanto, a maioria desses acidentes ocorreram em voos particulares. Se considerarmos apenas os acidentes do segmento regular, que são os voos comerciais, utilizados pela população em geral, esse número cai para 16 acidentes, o equivalente a apenas 1,32% dos acidentes aéreos.
Os números apresentados podem até parecer altos quando analisados isoladamente – ainda mais se você é uma daquelas pessoas que possui verdadeira fobia de voar – porém, quando comparamos o modal aéreo com o rodoviário podemos perceber o quão seguro é viajar de avião.
Conforme dados disponibilizados pela CNT (Confederação Nacional do Transporte), no mesmo período, aconteceram 643.785 acidentes, somente nas rodovias federais. Isso significa que, entre os anos de 2010 e 2019, uma pessoa no Brasil apresentava quase 43 mil vezes mais chances de se envolver em um acidente em uma rodovia federal do que em um acidente aéreo comercial.
Perder a vida em um acidente aéreo, então, é algo ainda mais raro, uma vez que cerca de 95,7% dos passageiros sobrevivem em um voo que sofre algum tipo de acidente, segundo a Revista Exame. Conforme os cálculos do professor do MIT Arnold Barnett, em artigo publicado pela BBC, as probabilidades de se morrer em um acidente aéreo são muitíssimo baixas, de 1 em 1,3 milhão, no pior dos casos. Já Perry Flint, porta-voz da IATA, em entrevista também à BBC fez o seguinte comentário sobre o risco de catástrofes aéreas: “Digamos que se uma pessoa voasse todos os dias, experimentaria um acidente catastrófico em algum momento dentro dos próximos 2,7 mil anos”. Acho que podemos dizer que é seguro, não?
Entretanto, a aviação nem sempre foi tão segura como é hoje. Na década de 70 tínhamos aproximadamente 6 acidentes fatais a cada milhão de decolagens, como pode ser observado no gráfico abaixo, com os dados da ASN (Aviation Safety Network), que mostra evolução na capacidade de conter o número de acidentes fatais, ao mesmo tempo que existe um aumento expressivo no número total de decolagens.
Desde 1970 até 2019 houve um aumento de 29,5 milhões de decolagens realizadas. Em contra partida, o número de acidentes por milhão de decolagens diminuiu em aproximadamente 12 vezes, saindo de um patamar de 6,35 para 0,51 acidentes fatais a cada milhão de decolagens. Em suma, o número de decolagens quadruplicou e os acidentes diminuíram 12 vezes mais. E como foi possível essa diminuição tão drástica?
Além do incremento em tecnologia, a diminuição significativa nos acidentes é devido ao fato de que todos os acidentes aéreos são investigados, seguindo as diretrizes estabelecidas em 1946 na convenção de Chicago. A investigação é feita por uma equipe de especialistas do país sede da ocorrência, apoiada por técnicos de todas as partes envolvidas (companhia aérea, fabricante da aeronave, controle de tráfego aéreo, etc…). Essa equipe é responsável pela apuração, a análise do ocorrido e por elaborar as recomendações que serão divulgadas para todas as entidades que possam evitar a mesma falha no futuro, como outras fabricantes de aeronave, por exemplo. Portanto, o grande avanço na segurança aérea, deve-se ao processo de aprender com cada uma das ocorrências, através da análise das causas que contribuíram para o evento e a divulgação das conclusões para que a comunidade aeronáutica possa tomar medidas para que elas nunca mais voltem a ocorrer.
Os recentes acidentes ocorridos com o Boeing 737 MAX podem ser tomados como um exemplo de uma análise de causas extremamente minuciosa. Para entender esse caso, é preciso tomar conhecimento da história dessa aeronave. Bom, o projeto do 737 MAX nasceu como uma reação da Boeing ao lançamento da família NEO do modelo A320 fabricado pela concorrente Airbus, conforme explicação do Lito Sousa, um dos maiores especialistas em manutenção de aeronaves do Brasil, em entrevista à Rádio Jovem Pan. O novo conceito, utilizado para ambas aeronaves, conta com um motor maior, que reduz o consumo de combustível e tem um menor custo de manutenção. Como o 737 é um avião mais baixo que o A320, foi necessário adaptar a localização do motor mais avantajado, o que resultou em um problema aerodinâmico. Em determinadas condições de voo, que são raras, o avião tende a “levantar o nariz” o que pode o fazer perder sustentação. A ideia foi criar um software que abaixasse o nariz do avião mesmo sem a interferência do piloto. Entretanto, os pilotos não estavam cientes dessa função, uma vez que não houve o devido treinamento, por se tratar de uma condição considerada rara. Como um acidente normalmente é resultado de uma cadeia de eventos, as condições climáticas em conjunto com o problema de projeto e a falta de treinamento da tripulação resultaram em dois acidentes trágicos com o 737 MAX ocorridos em outubro de 2018 e março de 2019.
Para analisar este problema, encontrar suas causas fundamentais e determinar as correções e melhorias necessárias foi criada uma comissão, envolvendo várias entidades como a Força Aérea Americana, o Departamento de Transportes e até mesmo a NASA. Todas as soluções técnicas descobertas foram revisadas por 10 países diferentes e houve o envolvimento de mais de 391 mil horas de engenharia e 3 mil horas de voo para testar as modificações realizadas, conforme detalhado pelo Lito Sousa em seu canal. Com todo esse esforço empregado é possível entender porque alguns especialistas afirmam que o 737 MAX é hoje a aeronave mais segura em operação. Afinal, o mundo todo se debruçou sobre esse projeto buscando qualquer possível problema que ele poderia apresentar.
Em suma, o que a aviação faz, quando se depara com um problema, é um exemplo do ciclo PDCA utilizado com excelência: se identifica o problema, analisa-se a fundo o que aconteceu para buscar as causas-raiz, define-se a ações necessárias para correção e padronizam as ações bloqueadoras das causas, para que elas nunca mais ocorram.
Mas porque existem muitas empresas que não conseguem alcançar um resultado semelhante mesmo utilizando essa metodologia – ou uma de suas variantes – como forma de resolver seus problemas?
Os principais motivos que podem ser observados nas empresas são os seguintes:
- Utilizam indicadores inadequados ou definem mal os seus problemas – uma das premissas do PDCA se baseia no controle dos indicadores da organização. Eles servem para medir o desempenho da operação através de fatores estabelecidos. Entretanto, se esses indicadores estiverem avaliando fatores equivocados, não será possível definir o real problema, que é justamente o que inicia o ciclo do PDCA. Sem a definição correta do problema, todos os esforços realizados na sequência do ciclo serão em vão.
- Precisam lidar com sua própria incompetência – a metodologia do PDCA propõe que, é imprescindível que se busque as causas geradoras do problema. Ao fazer esse exercício, muitas vezes os gestores acabam se dando conta que eles mesmos geraram o problema, ou deixaram de tomar decisões que poderiam preveni-lo. É figura conhecida de muitas empresas aquele gestor que no seu plano de ação, sempre, só constam ações que ele delegou a responsabilidade para outras áreas. Resolver, de fato, os problemas exige maturidade gerencial e humildade para assumir e corrigir o que for necessário. No caso do 737 Max, uma das conclusões considerou que a decisão de retirar um dos sensores de ângulo de ataque do projeto colaborou para a série de erros que levaram aos desastres ocorridos.
- Não possuem conhecimento técnico suficiente para resolver a situação – Muitas vezes é preciso contar com pessoas de fora do setor ou até da empresa para auxiliar na resolução de problemas mais complicados. Problemas de produtos podem ser mais facilmente resolvidos com a ajuda de um grupo de clientes, já problemas técnicos, às vezes, precisam contar com o auxílio de um perito ou uma consultoria especializada, o que leva ao próximo motivo, listado na sequência.
Uma boa análise de um problema complicado pode consumir tempo e recursos. Muitas vezes será necessário deslocar pessoas de sua rotina e parar operações para que o problema seja, de fato, resolvido, o que pode mexer, temporariamente, no bolso da empresa. Quando o esforço necessário é muito grande, será preciso avaliar se os ganhos que serão obtidos com a eliminação do problema compensam o montante investido para resolvê-lo. No caso da aviação em que a excelência operacional é mandatória, a opção de seguir com um processo “meia boca” não tem vez, já que os prejuízos podem ir além dos financeiros. A Boeing, por exemplo, pode chegar à impressionante cifra de US$ 25 bi com a soma dos prejuízos relacionados à paralisação dos voos, compensação para as companhias aéreas e alterações na produção do MAX, segundo estimativa de Sheila Kahyaoglu, da Jefferies, informado no Diário do Comércio.
Sumarizando, a forma como a aviação lida com seus problemas, investigando a fundo, expondo as causais fundamentais e tomando ações para bloqueá-las, pode servir como uma excelente inspiração para empresas dos mais diversos ramos, tornando os processos tão sólidos e confiáveis quanto aproveitar um voo da aviação comercial.
Autores:
Carolina Raquel Rodrigues
Consultora na MERITHU Consultoria. É engenheira de produção formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, possui MBA em Gestão Empresarial pela FGV e, atualmente, cursa MBA em Marketing na USP. Durante seus mais de 10 anos de trajetória profissional em empresas nacionais e multinacionais, atuou orientada para as necessidades do mercado, gerenciando portfólios, com envolvimento em todo o ciclo de vida do produto, desde a especificação até a obsolescência, passando pela estratégia de precificação, desenvolvimento, posicionamento de mercado e lançamentos nacionais e mundiais dos produtos.
Maximiliano Muñoz Cavalcanti
Consultor na MERITHU Consultoria. É graduando em engenharia de materiais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Estudou na Universidade Politécnica de Worcester e na Universidade de Purdue. Foi consultor e diretor de projetos na EME Jr., empresa júnior da engenharia de materiais de UFRGS. Atuou na GERDAU, auxiliando no gerenciamento da rotina e melhoria dos processos e também na GNW Engenharia, auxiliando na elaboração e aprovação de projetos de energia solar.